A minha avó dizia que cama desarrumada era sinónimo de espírito desassossegado. Que haviam gavetas por arrumar, organizar e muitas delas ainda por sentir e viver. Por muito tempo, deixei essa cama desarrumada, esperando que por milagre alguém lá fosse e soubesse de uma poção mágica que reverte-se tudo, que me mostrasse cada gaveta e cada sítio só seu. Só que isso não aconteceu.
Os dias foram passando. O caos foi acumulando. Deixei de viver, deixei de comer. Passei a existir, caminhando cabisbaixa debaixo de chuva, de encontro ao comboio no final da esquina. Todos os dias tomava a mesma rotina. Para o trabalho e para casa. Levando-me à exaustão de não saber gerir as minhas emoções e os meus pensamentos. Deixando que a confusão se instalasse, de apodera-se de mim e da minha atual fraqueza. Desisti.
Aprendi que na vida desistimos muitas vezes. Há quem nos diga que não desiste, só que não acredito. Todos, um dia, desistem de alguma coisa, nem que seja para bem da sua saúde mental. Só que, naquele dia, desisti de mim. De tentar mover gavetas, de tentar mover os elefantes que se iam acumulando na minha sala. Deixei que todos ali ficassem, que eu ficasse, até que a dor passasse.
John Green diz-nos que a dor é para ser sentida. Senti-a. Até ao infinito, que me pareceram aqueles dias. Sozinha. O telemóvel nem tocou. O chefe nem deu pela minha falta. As minhas colegas não mandaram mensagem. O espaço que ocupava não era nenhum. Era um vazio só. Não existia ali ninguém. Era uma sombra na vida das pessoas. Alguém que passava para apanhar mais um comboio, seguindo para a sua vida miserável. Coexistindo. Passei anos assim. Sendo ignorada por todos. Sofrendo em silêncio, acreditando que a minha dor não era suficientemente grave ou grande para ser ouvida, para ser contada.
Sendo invisível. Aprendi que somos substituíveis. Que se durante uma semana não aparecermos, que nem sequer pensam duas vezes antes de contratarem outra pessoa. Que os amigos, não os que deveriam ser apenas colegas, não nos ligam, não dão pela nossa falta. Só voltam quando necessitam. Na falta de necessidade, nada retorna. Deixei-me ficar.
Arrumei a cama. Sentei-me sobre ela e rabisquei tudo sobre a minha vida até então. Fiz uma psicanálise e descobri tantos traumas, mágoas e assuntos em aberto que desconhecia. Afinal, nem eu mesma me entendia ou conhecia por inteiro. Arrumei tudo. Todas as gavetas se encaixaram por fim, onde sempre pertenceram.
Voltei à vida, para vivê-la. Senti toda a dor. Dei tempo para senti-la. Porque a dor demora. A dor faz-se prolongar porque é necessária, para crescer. Deixei doer. Deixei que curasse. Até a cura demora. E assim que tudo ficou concluído, renovei-me e voltei a ser a miúda de antes.
Despedi-me. Fui em busca do meu grande sonho. Renovei a casa. Comprei plantas. Mandei os elefantes embora e diverti-me ao arrumar a cama todos os dias. Feliz. Concretizada. Curada. Com as gavetas todas organizadas. Algumas concluídas e fechadas outras por abrir e serem estreadas. Tudo no seu tempo. Pois, a qualquer tempo, se é tempo de se ser feliz.
2 Comentários
Há alturas em que precisamos mesmo dessa desarrumação, para, depois, nos renovarmos por completo!
Muitas das vezes, só assim vemos a desarrumação que temos em mãos.